20 maio, 2007

porque a vida é assim II

seu amor morre e você não pode fazer nada

seqüência


Não abriram ainda as lojas, salvas as leitarias e os cafés, mas o repouso não é de torpor, como o de domingo; é de repouso apenas. Um vestigio louro antecede-se no ar que se revela, e o azul córa pallidamente atravez da bruma que se esfina. O começo do movimento rareia pelas ruas, destaca-se a separação dos peões, e nas poucas janellas abertas, altas, madrugam tambem apparecimentos. Os electricos traçam a meio-ar o seu vinco mobil amarello e numerado. E, de minuto a minuto, sensivelmente, as ruas desdesertam-se.

(do fragmento 87 do Livro do desassossego)

Louvor e simplificação de Álvaro de Campos (excerto)
Mário Cesariny
Há uma hora, há uma hora certa
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa, a sair para, o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente gente! olhos, narinas, bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates, telefonistas,
varinas, caixeiros desempregados,
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos
mictórios para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico, em marcha,gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua. (...)