28 dezembro, 2005

por pura cor vadia

por pura cor vadia

muito de leve eu podia te tocar.

mas não.

purpúrea covardia.

22 dezembro, 2005

por ocasião do natal

The author of the Jesus papers speaks



In my dream
I milked a cow,
the terrible udder
like a great rubber lily
sweated in my fingers
and as I yanked,
waiting for the moon juice,
waiting for the white mother,
blood spurted from it
and covered me with shame.
Then God spoke to me and said:
People say only good things about Christmas.
If they want to say something bad
they whisper.
So I went to the well and drew a baby
out of the hollow water.
Then God spoke to me and said:
Here. Take this gingerbread lady
and put her in your oven.
When the cow gives blood
and the Christ is born
we must all eat sacrifices.
We must all eat beautiful women.






Fala o Autor dos escritos de Jesus


No meu sonho,
eu ordenhava uma vaca,
o úbere medonho
como um enorme lírio de borracha
suava entre meus dedos
e enquanto eu puxava,
esperando o suco de lua,
esperando a branca mãe,
jorrou sangue
e me cobriu de vergonha.
Então Deus me falou, e disse:
As pessoas só dizem coisas boas na época do Natal.
Se querem dizer algo ruim,
elas sussurram.
Aí eu fui até o poço
e puxei um bebê da água profunda.
E então Deus me falou, e disse:
Eis aqui. Tome uma mulher de bolo de gengibre
e ponha no seu forno.
Quando a vaca dá sangue
e é nascido o Cristo
todos devemos comer sacrifícios.
Todos devemos comer belas mulheres.
Anne Sexton, trad. c.

12 dezembro, 2005

por ocasião de uma releitura d'O Cortiço

Fado tropical


Chico Buarque - Ruy Guerra



Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal


"Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo...(além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."


Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas o meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa..."


Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial

06 dezembro, 2005

palavradura

rude

a pa-
lavra-
dura

urdidura
escalavra
e
caladura

26 novembro, 2005

segunda primavera

porque este foi um ano de dois invernos e duas primaveras


porque a fome sempre chega


porque o céu pode ser azul mesmo quando neva


porque os invernos se revezam


porque não neva lá fora


porque voltarei a comer pétalas de flor


porque desmancharei laços de fita

16 novembro, 2005

cuidado com o vício

cenouras*

(frederyko)



eu hoje tenho um assundo delicado pra falar com você
eu muito tenho meditado sobre a vida que você esqueceu
você está com a cabeça virada para o nada
e não procura nem saber o que eu penso e o que faço
eu acredito que você ainda tenha uma pequena chance
e eu encontrei a solução pro seu caso
e lhe proponho um tratamento pra você melhorar


eu vou plantar cenouras na sua cabeça




*post com agradecimentos especias à moça do laço de fita, que encontrou-me a música

08 novembro, 2005

pelos ares tão parados deste blog

eu ainda te dedicaria músicas alheias


bandeira


(zeca baleiro)


eu não quero ver você cuspindo ódio

eu não quero ver você fumando ópio pra sarar a dor

eu não quero ver você chorar veneno

não quero beber o teu café pequeno
eu não quero isso seja lá o que isso for

eu não quero aquele eu não quero aquilo

peixe na boca do crocodilo

braço da vênus de milo acenando ciao

não quero medir a altura do tombo

nem passar agosto esperando setembro
se bem me lembro

o melhor futuro este hoje escuro

o maior desejo da boca é o beijo
eu não quero ter o tejo me escorrendo das mãos

quero a guanabara quero o rio nilo

quero tudo ter estrela flor estilo

tua língua em meu mamilo água e sal

nada tenho vez em quando tudo

tudo quero mais ou menos quanto

vida vida noves fora zero

quero viver quero ouvir quero ver

(se é assim quero sim acho que vim pra te ver)

04 novembro, 2005

Sixth Psalm (3ª parte, e última)

For America is a land of Commies and Prohibitionists but Anne does not see it. Anne is locked in. The Trotskyites don’t see her. The Republicans have never tweaked her chin for she is not there. Anne hides inside folding and unfolding rose after rose. She has no one. She has Christopher. They sit in their room pinching the dolls’ noses, poking the doll’s eyes. One time they gave a doll a ride in a fuzzy slipper but that was too far, too far wasn’t it. Anne did not dare. She put the slipper with the doll inside it as in a car right into the closet and pushed the door shut.


For America is the headlight man at the Ford plant in Detroit, Michigan, he of the wires, he of the white globe, all day, all day, all year all his year’s headlights, seventy a day, improved by automation but Anne does not.


For America is a miner in Ohio, slipping into the dark hole and bringing forth cat’s eyes each night.


For America is only this room… there is no useful activity.


For America only your dolls are cheerful.


Anne Sexton



Porque a América é uma terra de comunas e proibicionistas, mas Anne não vê isso. Anne está trancada. Os trotskistas não a vêem. Os republicanos nunca torceram o queixo dela, pois ela não está lá. Anne se esconde do lado de dentro a dobrar e desdobrar rosa após rosa. Ela não tem ninguém. Ela tem Christopher. Eles se sentam na sala, beliscando o nariz das bonecas, furando os olhos delas. Uma vez eles deram carona pra uma boneca numa pantufa de pelúcia, mas aquilo estava muito distante, muito longe não foi. Anne não arriscou. Ela pôs a pantufa com a boneca dentro como num carro direto pro armário e trancou a porta.


Porque a América é o homem-farol na fábrica da Ford em Detroit, Michigan, ele dos fios, ele do globo branco, o dia inteiro, o dia inteiro, o ano inteiro todos os faróis do seu ano inteiro, setenta por dia, aperfeiçoado pela automação mas Anne não.


Porque a América é um mineiro em Ohio, deslizando para um buraco escuro e trazendo à tona olhos-de-gato a cada noite.


Porque a América é apenas este quarto... nenhum afazer é útil.


Para a América apenas suas bonecas são alegres.


trad. chamilly

29 outubro, 2005

Sixth Psalm (parte 2*)

For America is a reformed burglar turned locksmith who pulls up the shades of his shop at nine A.M. daily (except Sunday when he leaves his phone number on the shop door).


For America is a fat woman dusting a grand piano in English Creek, New Jersey.


For America is a suede glove manufactorer sitting in his large swivel chair feeling the goods and assessing his assets and debits.


For America is a bus driver in Embarass, Minnesota, clocking the miles and watching the little cardboards file by.


Anne Sexton


Porque a América é um ladrão regenerado trabalhando como chaveiro que acende as luzes de sua oficina diariamente às nove da manhã (exceto aos domingos, quando deixa seu telefone na porta da oficina).


Porque a América é uma mulher gorda espanando um grande piano em English Creek, Nova Jérsei.


Porque a América é um fabricante de luvas de camurça sentado em sua grande cadeira giratória apalpando as mercadorias e calculando seus ativos e passivos.


Porque a América é um motorista de ônibus em Embarass, Minnesota, medindo as milhas e assistindo às pequenas malas de papelão passarem em fila.


trad. chamilly


*again: a divisão em partes foi feita por mim, por razões técnicas. a esperança continua a mesma.

27 outubro, 2005

de pernas bem abertas

que fosse o resgate de uma delicadeza roçar a língua pela tua pele asfaltada e dissolvê-la
- bala -
em espasmos carnívoros

25 outubro, 2005

para apostar corrida com o fogo

- 1. tome uma folha de papel em branco azul ou preta.


0. escreva algo inédito que seja no mínimo muito bom e crie estima por ele. não faça cópias.


1. vá a uma esquina ou praça levando seu texto pela mão.


2. segure o papel pelos cabelos.


3. leia bem muito em voz alta. caso o texto seja curto, repita a leitura continuamente, acrescentando sal aos poucos.


4. acenda seu isqueiro laranja.


5. toque fogo no papel, começando pelos pés . (nesse ponto, espera-se que o declamador seja tomado de desespero e acelere sua leitura)


6. continue lendo até que seus olhos encontrem a linha do fogo.


7. aconteça o que acontecer, não solte o papel.


. a queimadura na ponta dos dedos ao fim de tudo será o de menos.

e por falar nisso

com pouco anunciava:
passa-se o ponto
(e a cruz)

18 outubro, 2005

da fome ao fêmur
comendo carne roendo osso

12 outubro, 2005

Sixth Psalm (parte 1*)

For America is a lady rocking on a porch in an unpainted house on an unused road but Anne does not see it.


For America is a librarian in Wichita coughing dust and sharing sourballs with the postman.


For America is Dr. Abraham passing out penicillin and sugar pills to the town of Woolrich, Pennsylvania.


For America is an old man washing his feet in Albion, Michigan. Drying them carefully and then applying Dr. Scholl's foot powder. But Anne does not see it. Anne is locked in.



Anne Sexton




Sexto Salmo


Porque a América é uma senhora balançando na varanda de uma casa sem pintura numa estrada abandonada, mas Anne não vê isso.


Porque a América é uma bibliotecária em Wichita tossindo pó e dividindo docinhos azedos com o carteiro.


Porque a América é o Dr. Abraham distribuindo penicilina e pílulas de açúcar na cidade de Woolrich, Pensilvânia.


Porque a América é um velho homem lavando os pés em Albion, Michigan, secando-os com cuidado e em seguida passando talco para pés Dr. Scholl. Mas Anne não vê isso. Anne está trancada.


trad. chamilly


*a divisão em partes foi feita por mim, por razões técnicas. espero poder postar o restante do poema em breve.

do "diário de um apaixonado" (e não é o meu)

O apaixonado entra na relação independente e autônomo, afinal já passou por relacionamentos anteriores e pretende usar sua experiência. Finalmente vai colocar em prática o breviário da sedução e exercitar os conselhos dados aos amigos. No começo, parecerá implacável, seguro e confiante. Criou uma fortaleza de dar medo. Depois de alguns beijos e de entortar o pé sem perceber, sacrificará as táticas e será sincero como nunca na vida. Falará dos seus medos, confessará segredos que nunca ousou contar, irá se declarar de modo precoce contrariando sua idéia de que não poderia fazer isso. É necessário colar o adesivo de "frágil" no apaixonado, não sobrevive de um endereço a outro, de uma certeza a outra. É um corpo em mudança.
***
Perdoai a boca, não salta como os olhos. Perdoai os olhos, guardo sua nudez em minha boca.
Não desejo beber outra sede, quero fechar os lábios ao café, ao vinho, à água. Nada brilhará mais os dentes. Deixarei o mel de sua fome crescer em mim com a rapidez da barba.
O gosto do seu sexo não é doce, não é salgado, é ao mesmo tempo toda a mesa.
Fabrício Carpinejar

11 outubro, 2005

06 outubro, 2005

sim, mamãe III

filha, você acha realmente que a vida será tão pobre a ponto de nunca mais?

05 outubro, 2005

Poema de sete faces


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.


O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.


O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.


Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.


Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo,
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.


Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Drummond
eu queria muito ser gauche na vida
mas só consigo ser left
leftover

01 outubro, 2005

do diário de um vírus

sábado, 02 de novembro de 1968

É pouco, é muito pouco. Ser a forma de vida mais simples na mais complexa. Outro corpo para me reproduzir. Minha única condição de vida, que não se cura. A vida de fusão: o que é vivo vai para. O estremecimento gigantesco veio do ventre dela neste momento em que nos fundimos, a hora em que fazemos o grande perigo de. Estamos íntimos e sinto seus núcleos dispersos. Os nervos a descoberto, viciados em intensidade. Existo nesse corpo sem pedir licença. Ela sente a própria dor no instante em que escrevemos, a hora do maior desamparo. O peito estreito. O que é vivo, por ser vivo, se contrai. E então eu soube: a vida nascendo dói. Sem coração, carrego a angina pectoris da alma. Não posso ser apenas eu.


11 de fevereiro de 2001.

Ninguém acredita em elefantes azuis que voam, porque ninguém nunca viu. Eles se confundem com o azul do céu, flutuando como balões de gás. E estão em toda parte.

Eu não acredito, eu sei que elefantes azuis que voam existem, porque sinto e penetro seus corpos. Têm a carne de algodão doce, o sangue feito de sopro, e andam quase se dissolvendo pelo ar, como as últimas imagens de sonho no decorrer do dia. A razão não alcança esses elefantes.

Amo a sutileza desses bichos flanando sobre os arranha-céus. Pegá-los no pulo do sol pela manhã. Revirar o sangue de sopro em ventania pela tarde, descolorir a pele em tons cinza de concreto urbano, esgarçar o algodão da carne até desmanchar o corpo. Enquanto os homens pensam que quem vira é o tempo.

Tromba d’água. Enquanto a razão faz meteorologia.

25 setembro, 2005

the love plant

A freak but moist flower
tangles my lungs, knits into my heart,
crawls up my throat
and sucks like octopi on my tongue.
You planted it happily last summer
and I let it take root with my moon-hope,
not knowing it would come to crowd me out,
to explode inside me this March.
All winter trying to diminish it,
I felt it enlarge.
But of course never spoke to you of this,
for my sanity was awful enough,
and I felt compelled to think only of yours.
Now that you have gone for always
why does not the plant shrivel up?
I try to force it away.
I swallow stones.
Three times I swallow slender vials
with crossbones on them.

But it thrives on their liquid solution.
I light matches and put them in my mouth,
and my teeth melt but the greenery hisses on.
I drink blood from my wrists
and the green slips out like a bracelet.
Coudn't one of my keepers get a lawn mower
and chop it down if I turned inside out for an hour?
This flower, this pulp, the hay stuff
has got me, got me.
Apparently both of us are unkillable.

I am coughing. I am gagging. I feel it enter
the nasal passages, the sinus, lower, upper
and thus to the brain - spurting out of my eyes,
I must find a surgeon who will cut it out, burn it out
as they do sometimes with violent epileptics.
I will dial one quickly before I erupt!

Would you guess at it
if you looked at me swinging down Comm. Ave.
in my long black coat with its fur hood,
and my long pink skirt poking out step by step?
That under the coat, the pink, the bra, the pants,
in the recesses where love knelt
a coughing plant is smothering me?

Perhaps I am becoming unhuman
and should accept its natural order?
Perhaps I am becoming part of the green world
and maybe a rose will just pop out of my mouth?
Oh passerby, let me bite it off and spit it at you
so you can say "How nice!" and nod your thanks
and walk three blocks to your lady love
and she will stick it behind her ear
not knowing it will crawl into her ear, her brain
and drive her mad.

Then she will be like me -
a pink doll with her frantic green stuffing.




Uma flor anômala e úmida
embaraça meus pulmões, se entrelaça no meu coração,
sobe pela minha garganta
e suga a minha língua como um polvo.
Você a plantou alegremente no último verão
e eu com minha esperança lunática a deixei criar raízes,
sem saber que ela chegava pra me expulsar,
pra explodir em mim neste Setembro.
O inverno inteiro tentando desdenhá-la,
eu a senti crescer.
Mas é claro que nunca te falei disso,
pois minha sanidade era terrível bastante,
e me sentia obrigada a pensar só em você.
Agora que você se foi pra sempre
por que a planta não definha?
Tento forçá-la pra fora.
Engulo pedras.
Engulo três vezes parcas ampolas
tarja preta.
Mas ela se diverte naquele líquido.
Acendo fósforos e ponho na boca,
e meus dentes se derretem, mas a folhagem sibila.
Bebo sangue dos meus pulsos
e o verde escapole como um bracelete.
Será que um dos meus vigias não podia pegar um cortador de grama
e triturá-la se eu me virasse do avesso por uma hora?
Essa flor, essa polpa, essa coisa feno
me domina, me dominou.
Parece que ambas somos inextermináveis.
Estou tossindo. Engasgando. Eu a sinto entrar
pelas fossas, seios nasais, mais pra baixo, mais pra cima
e aí para o cérebro - jorrando pelos meus olhos,
preciso achar um cirurgião que a extirpe, que a incinere,
como fazem às vezes com epilépticos violentos.
Vou chamar logo um, antes que eu entre em erupção!
Você ia adivinhar
se me visse rebolando avenida abaixo,
no meu longo casaco negro de capuz de pele,
com minha longa saia rosa se espevitando passo a passo?
Que sob o casaco, o rosa, o sutiã, as calças,
nos recônditos onde o amor se ajoelhava
uma planta tossideira me sufoca?
Quem sabe eu esteja me tornando desumana
e deva aceitar essa ordem natural?
Quem sabe eu esteja me tornando parte do mundo vegetal
e talvez uma rosa vá pipocar de repente na minha boca?
Oh passante, deixe-me arrancá-la a dentadas e cuspi-la sobre você
aí você vai poder dizer "Que bom!" e acenar grato
e andar três quarteirões até sua amada dama
e ela então espetará a flor atrás da orelha
sem saber que a planta vai penetrá-la pela orelha, pelo cérebro
e enlouquecê-la.
Então ela será como eu -
uma boneca rosa com seu desvairado enchimento verde.
Anne Sexton, trad. chamilly

será que um dia sai?

22 setembro, 2005

meu amor,

de repente era preciso tocar todos os seus panos porque pano é que nem paixão tem que pegar pra sentir a costureira me falou e eu acreditei e fui no ônibus pensando pensando e você ia sempre tão longe procurando os irreais enquanto eu estorvo inútil puxando seus cobertores sobrando que nem jiló na janta na sua cama, um dia vou ficar velhinha e queria que fosse quentinha do seu lado com foguinho no coração e aí eu podia ter todos os motivos menos um pra ser triste e então seria alegre só por um milagre seu mas agora que você se foi pra sempre tenho é todos os motivos pra ser triste e aí não tem jeito porque fico é triste mesmo e isso tudo é tão difícil porque sei que é mentira essa história de amizade é conversa pra boi dormir e eu não durmo não sou boi só boba mesmo e tenho insônia até o remédio fazer efeito, sei que vamos sumir nos mundos cada um com o seu e quando a gente encontrar vai ser tudo tão estranho, oi, tudo bem? tudo, e você? e isso não vai ser verdade é só pra gente ser civilizada e parecer que é gente grande porque eu inda não sei nem sei quando vou saber e quando (se) souber já será tarde como chegar perto de você sem ser perto do meu amor e aí você vai começar com um papo burocracia que não é nada do que eu quero dizer nem o que me importa saber e quando você disser que a cleo pires é linda, eh lém casa, eu vou ter que concordar morrendo de ciúme-ciúme mas só por dentro que sou gente grande civilizada e não vou mostrar meu coração pesado e gigante que eu preciso esvaziar e muito embora eu saiba que não adianta que não tem mais nada a ver que não há nada que eu possa fazer que você não quer me ver, mesmo assim eu vou gritar vou correr e vou chorar até ficar

Necrológio dos desiludidos do amor

Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas estão torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia.

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe)

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.

Drummond

21 setembro, 2005

poeminha da terceira série

os ônibus têm número e destino
os ônibus sempre têm gente
a gente espera os ônibus
às vezes espera muito
nem sempre eles param pra gente
a gente sempre perde um
e depois pega outro
e às vezes pega errado
ônibus certo na hora certa
é a coisa mais rara
e sempre tem a hora de descer
(mesmo se a gente não quer)

eu não entendo os ônibus
ônibus são que nem gente

quero que vão todos para a puta que os pariu

19 setembro, 2005

trilha para um de doloridíssimos cotovelos sábado

Devolva-me
Renato Barros / Lilian Knapp

Rasgue as minhas cartas
E não me procure mais
Assim será melhor meu bem
O retrato que eu te dei
Se ainda tens não sei
Mas se tiver devolva-me
Deixe-me sozinho
Porque assim eu viverei em paz
Quero que sejas bem feliz
Junto do seu novo rapaz
O retrato que eu te dei
Se ainda tens não sei
Mas se tiver devolva-me


Vambora
Adriana Calcanhotto

Entre por essa porta agora
E diga que me adora
Você tem meia hora
Pra mudar a minha vida
Vem
Vambora
Que o que você demora
É o tempo que leva
Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda têm você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Dentro da noite Veloz
Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda têm você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Na cinza das horas

fim de caso

- eu quero que você fique bem
- mamãe também

15 setembro, 2005

sim, mamãe II

e outro dia fui pra espanha

blecaute

depois que você foi embora
eu fiquei riscando fósforos

13 setembro, 2005

idade

era uma vez muito velha
e não ligava pra mesuras

porque eu nunca ia ter essas imagens tão levinhas de pipoca no parque no cinema

algodão doce

porque o grão de açúcar derretendo na ponta da língua nunca ia ser suficiente, por mais que fossem vários e as línguas muitas.

11 setembro, 2005

06 setembro, 2005

I shall not care

When I am dead and over me bright April
Shakes out her rain-drenched hair,
Though you should lean above me broken-hearted,
I shall not care.

I shall have peace, as leafy trees are peaceful
When rain bends down the bough;
And I shall be more silent and cold-hearted
Than you are now

Sara Tisdale


Não me importarei nada

Quando estiver morta, e sobre mim o claro abril

sacudir seus cabelos de chuvas compactas,
embora vergues para mim de alma partida,
não me importarei nada.

Terei a paz que têm as árvores espessas
sob a chuva que os ramos lhes dobra.
E terei mais silêncio e um coração mais frio
do que tu, agora.

Trad. Cecília Meireles

sim, mamãe

tenho sonhado (literalmente) muito com mudar de país ultimamente. já mudei pros estados unidos, argentina e portugal. contei pra mamãe e ela disse: filha, vc está querendo fugir, é melhor chorar de uma vez.

04 setembro, 2005

e o amor sempre era uma vez que podia tanto e no fim era só aquilo mesmo, a gente ali, no olho da rua do furacão, gastando bisturi no asfalto, e aquela insistência em pronunciar tão bem uma língua morta

cartas e portuguesas

.depois de muitos anos vagando por invernos e batalhas, o cavaleiro de chamilly alcançou o convento de beja, onde o esperava sua amada mariana. ele levava cartas que não quis confiar aos correios, mas tampouco permitiu que ela as lesse. atearam-se logo fogo, às vestes, sim. pois era apenas chamilly apaixonado, chegando entre gatos e passarinhos, ao som dos tangos do piazzola. músicas alheias dedicadas a amante, palavras antigas do fundo de um rio amarelo. todos os tejos desaguavam no mar das águas de colônia, para molhar o pão de mel de todo dia que os alimentava. o chantilly veio depois, acompanhado dos suspiros e morangos e quiches e o clássico employer de poste, que tantas vezes havia falhado, e na verdade veio uma vez só.

.mas o inverno veio de novo e de novo chamilly partiu. novas cartas com promessas, outras tantas contrabandeadas, sem falar... mariana pedia volta, casa comigo. chamilly na neve, era tão branca e fria e mariana não. e as cartas e um amor correspondido, outro ficando sem resposta e o bordado de iniciais no lenço foi se desfazendo pelo fio solto. primeiro de abril no hemisfério norte, chamilly foi preso, chamilly acorrentado. cartas paravam de chegar, mariana definhando e de repente. quando chamilly chegou seria tarde demais. agora mariana é morta.